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Coisa julgada administrativa como precedente e segurança jurídica

Por Heleno Taveira Torres Todos sabemos dos limites de alegação da “coisa julgada administrativa” como precedente em matéria tributária, de restrita ou nenhuma eficácia em favor dos contribuintes. O assunto é complexo. Não há dúvidas. Contudo, uma questão oportuna que merece ser enfrentada é saber, pois, a partir de quantas decisões favoráveis ao mesmo contribuinte, sobre uma mesma e idêntica matéria, as administrações tributárias ficam vinculadas a não emitir novos autos de infrações pelos mesmos fatos jurídicos conhecidos e decididos no processo administrativo. Importante destacar que não se está questionando aqui a relação entre coisa julgada administrativa e processo judicial, ou mesmo os efeitos da coisa julgada administrativa para extensão a terceiros (outros contribuintes). A preocupação deste estudo reside nos limites da coisa julgada administrativa em face do mesmo sujeito passivo e pela mesma matéria jurídica questionada. O Código Tributário Nacional contempla a previsão da coisa julgada administrativa no artigo 156, IX, como causa de extinção do crédito tributário, verbis: “a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória.” Entretanto, a doutrina majoritária refere-se a este artigo como garantia da coisa julgada contra a possibilidade de o Fisco renovar em juízo a cobrança do tributo, objeto do mesmo processo administrativo. No processo administrativo fiscal da União, o artigo 45, do Decreto 70.235/72, em coerência com a norma do citado art. 156, IX do CTN, prescreve que “no caso de decisão definitiva favorável ao sujeito passivo, cumpre à autoridade preparadora exonerá-lo, de ofício, dos gravames decorrentes do litígio”. Contudo, a interpretação dada a este dispositivo sempre foi limitada unicamente à cobrança contemplada no lançamento objeto do processo em curso, e não quanto à extensão a casos idênticos. Na doutrina, a tese majoritária, desde Rubens Gomes de Sousa,[1] vê-se prevalecer o entendimento segundo o qual as decisões dos órgãos colegiados possuem eficácia de permanência, mas não fazem coisa julgada formal e material, pelo princípio de revisão dos próprios atos da administração e do princípio de controle jurisdicional dos atos administrativos, pela inafastabilidade do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV da CF). Assim, a doutrina considera a coisa julgada administrativa no limite daquilo que foi decidido definitivamente na via administrativa, sem prejuízo de que possa ser revista em processos futuros, pelo princípio de revisão dos seus próprios atos, ou que seu conteúdo possa ser rediscutido na esfera judicial (excetuado quando a decisão for em favor do contribuinte, por força do art. 156, X do CTN). Ora, à luz do texto constitucional vigente, cujo princípio do devido processo legal assegura as mesmas garantias ao processo administrativo e ao processo judicial (art. 5º, LV da CF), resta saber se ainda poderá prevalecer aquele entendimento formulado à luz do direito administrativo de antanho. No processo civil, o art. 485 do CPC estabelece que “o juiz não resolverá o mérito quando”, dentre outras hipóteses: “V - reconhecer a existência de perempção, de litispendência ou de coisa julgada”. Ademais, prescreve no seu art. 337, incisos VI e VII, que “incumbe ao réu, antes de discutir o mérito, alegar: VI - litispendência; VII - coisa julgada”; e ainda esclarece os seguintes pressupostos: “§ 1º Verifica-se a litispendência ou a coisa julgada quando se reproduz ação anteriormente ajuizada.” § 2º Uma ação é idêntica a outra quando possui as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. § 3º Há litispendência quando se repete ação que está em curso. § 4º Há coisa julgada quando se repete ação que já foi decidida por decisão transitada em julgado.” No que concerne a questões jurídicas, como direito de crédito, alcance de isenção ou de imunidade, enquadramento como sujeito passivo ou mesmo critérios de definição de fato gerador ou base de cálculo de tributos, deveras, a situação não recai apenas sobre questões fáticas, mas verdadeiras questões de direito. A coisa julgada reclama demarcação objetiva. A controvérsia, entabulada pelo objeto da lide e pelo “pedido”, define seus contornos.[2] Quanto à eficácia da coisa julgada e seu objeto, dispõe o art. 503 do novo Código de Processo Civil, in verbis: “A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida”. A questão examinada em dado processo administrativo, por força do devido processo legal (art. 5º, LV da CF), não se pode revogar deliberadamente, por conveniência ou oportunidade, a exemplo dos atos discricionários. Sequer processo judicial a poderá desconstituir, quando favorável ao contribuinte. Destarte, resta saber se a mera condição de “relação jurídica de trato continuado” seria suficiente para justificar a superação da coisa julgada pela autuação de períodos sucessivos, o que não se pode apresentar como motivo suficiente para afastar os precedentes formados em favor do mesmo contribuinte, apurado por fatos equivalentes e pelos mesmos aspectos jurídicos. Sobre o tema da coisa julgada em matéria tributária, firmou-se, antes mesmo do Código Tributário Nacional, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a Súmula 239, segundo a qual: “Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores”. Esta Súmula, porém, passados mais de 50 anos (13 de dezembro de 1963), precisa ser interpretada em conformidade com a situação de fato que a originou e não se aplica como extensão a qualquer forma de “coisa julgada”. Logo, se o objeto da questão é um dado lançamento que se houve por nulo em certo exercício, claro que na renovação do lançamento no exercício seguinte não estará obstada pelo julgado, como destaca o relator. E esclarece o mesmo sobre os efeitos da prescrição ou decadência, que não poderia formar efeitos de coisa julgada a decisão que a reconhece em determinado lapso temporal.[3] A confirmar esta assertiva, o Relator bem destacou: “Mas se os tribunais estatuíram sobre o imposto em si mesmo, se o declararam indevido, se isentaram o contribuinte por interpretação, da lei ou de cláusula contratual, se houveram o tributo por ilegítimo, porque não assente em lei a sua criação ou por inconstitucional a lei que o criou em qualquer desses casos o pronunciamento judicial poderá ser rescindindo pelo meio próprio, mas enquanto subsistir será um obstáculo à cobrança, que, admitida sob a razão especiona (sic) de que a soma exigida é persa, importaria particularmente em suprimir a garantia jurisdicional do contribuinte que teria tido, ganhando a demanda a que o arrastara o Fisco, uma verdadeira vitória de Pyrrho.” Na prática, porém, colhe-se exemplos de autuações perpetradas contra a coerência administrativa (fiscalizações com resultados conflitantes sobre o mesmo contribuinte); autuações contrárias a coisa julgada do mesmo contribuinte; autuações mesmo após decisões do STJ ou do STF com eficácia erga omnes de efeitos repetitivos ou de repercussão geral; autuações que não observam jurisprudência majoritária dos tribunais superiores ou mesmo dos órgãos de cúpula dos tribunais administrativos. O Brasil, sem dúvidas, está a merecer um Código Nacional de Processo Administrativo Fiscal, predisposto para uniformizar e estabelecer critérios comuns de procedimentos, que contemple regimes que promovam segurança jurídica, simplifique as relações tributárias e reduza a litigiosidade. O quadro atual é uma evidência de que o próprio processo administrativo induz a litigância, ao não contemplar instrumentos para inibir a repetição de autuações sobre o mesmo contribuinte, por uma mesma hipótese fática e idênticos fundamentos jurídicos. Em recente artigo, o Professor da Faculdade de Direito de Coimbra Jorge Alves Correia, intitulado: “O Valor do Precedente no Direito Administrativo Português”, bem esclarece que “no plano externo da decisão administrativa, através da prática de atos administrativos, pode bem suceder que se assista à formação de uma prática habitual de resolução de casos semelhantes, motivada por uma certa interpretação ou aplicação das normas jurídicas.”[4] E, assim, ao tratar das “zonas de vinculação jurídica ao precedente administrativo”, faz diferenciar decisões sobre matérias de legalidade e decisões sobre matérias sujeitas à discricionariedade. Interessa-nos a primeira. E, assim a considera: “A operatividade do precedente administrativo começa por incidir sobre zonas típicas de vinculação. Se, nos termos da lei, as decisões administrativas são devidas ou vinculadas quanto ao seu conteúdo (designadamente aquelas a que correspondam direitos dos destinatários, como sucede no Direito da Segurança Social), então há autovinculação administrativa ao precedente. Nesses casos, fundada numa certa interpretação das normas jurídicas, a atuação administrativa deve ser objetiva e imparcial: o órgão decisor deve tratar de modo igual situações iguais, segundo os mesmos critérios, as mesmas medidas e as mesmas condições a todos os particulares a que venham a ser aplicadas e se encontrem em situação idêntica.” Ademais, a derrogabilidade ou afastamento de um precedente não é uma atividade administrativa discricionária, diz ele. O Julgador terá o dever de motivar com razões suficientes a justificar a diferenciação da mudança de tratamento, por fundamentos de fato e de direito. Se não houver motivações suficientes, razoável assumir o caráter de coisa julgada para a administração, como respeito pelos precedentes, de modo a evitar conflito e arbítrio na mudança do julgamento ou quebra do princípio de não discriminação. Neste particular, a preservação da unidade de sentido das normas que compõem o sistema tributário, acrescida da estabilidade e permanência dos conteúdos decididos, sob a forma dos precedentes administrativos, constitui a mais relevante tradução da estabilidade e da previsibilidade do direito tributário. Eis o conteúdo do princípio da segurança jurídica por orientação, para o qual concorre a eficácia de precedente da “coisa julgada administrativa”. Com efeito, para a manutenção da garantia da estabilidade das relações jurídicas, é imprescindível a observância da coisa julgada administrativa. Não se trata, com isso, de simplesmente pretender transpor o instituto da coisa julgada do processo judicial para o âmbito administrativo, eis que tal fato implicaria em ignorar a dualidade jurisdicional como reflexo do princípio da inafastabilidade de jurisdição. Trata-se, em verdade, de afirmar a autoridade das decisões finais proferidas pela Administração Pública, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, como corolários do devido processo legal. Quando a Administração Pública desrespeita as suas próprias decisões, ela está automaticamente descreditando a autoridade do processo administrativo e, no caso, do processo administrativo-tributário. Afinal, de que adianta o julgamento final realizado por órgão colegiado e paritário, integrante da estrutura administrativa, se os demais órgãos de revisão administrativa integrantes da mesma estrutura não o respeitam? A violação à segurança jurídica como tutela da confiança legítima do administrado é ainda mais grave do que a simples inobservância de precedentes administrativos, porquanto não se trata de expectativa em relação à aplicabilidade de um padrão decisório referente a caso análogo, mas de expectativa gerada pela atuação administrativa em relação ao próprio contribuinte e aos mesmos fatos. E o tempo, por si mesmo, não pode servir de critério de discriminação entre situações idênticas, como assentou Celso Antônio Bandeira de Mello.”[5] Se o tempo não pode constituir fator de discriminação entre duas pessoas, o que se dirá em relação ao mesmo inpíduo, como ocorre no presente caso. Em conclusão, é chegado o tempo de se rever o posicionamento sobre as hipóteses nas quais a coisa julgada administrativa possa ser aplicada, com eficácia vinculante para todas as esferas da administração tributária respectiva. Importante frisar que não se quer dizer, com isso, que seria vedado à Administração a modificação de seu entendimento quanto a determinados fatos decorrentes de interpretação legal, mas sim, que tal mudança deve, a um só tempo: (i) ser justificada e devidamente motivada, a fim de se demonstrar que a decisão anterior representa violação à disposição legal; e (ii) ser aplicada apenas aos casos futuros, em atendimento à irretroatividade como reflexo direto da tutela da confiança legítima do administrado. A aplicabilidade do art. 146 do CTN às alterações de entendimento no âmbito da Administração tributária não representa, de maneira alguma, violação à legalidade. Logo, a irretroatividade do novo parâmetro decisório administrativo em relação ao mesmo contribuinte e aos mesmos fatos não se opõe à legalidade, mas, ao contrário, representa uma emanação da certeza jurídica e da confiança no ordenamento, sob o manto da segurança jurídica. Uma vez alterado o entendimento no âmbito do processo administrativo-tributário, este só poderá ser aplicado a fatos geradores futuros e posteriores à implementação do novo padrão decisório, em face do mesmo sujeito passivo e em relação aos mesmos fatos. [1][1] SOUSA, Rubens Gomes de. A coisa julgada no direito tributário. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 5, p. 48-76, jul. 1946. Disponível em: . Acesso em: 21 Ago. 2019. doi: http://dx.doi.org/10.12660/rda.v5.1946.9427. [2] Cf. MACHADO, Hugo de Brito. Mandado de segurança em matéria tributária. 8ª edição. São Paulo: Dialética, 2009. [3] “O que se decidiu para ‘sumular’ e que consta do enunciado 239 — e isso só ocorreu praticamente vinte anos mais tarde daquele leading case, em sessão Plenária do STF realizada em 13 de dezembro de 1963 —, é que naqueles casos em que um específico ato de lançamento tributário é questionado e é ele, aquele específico ato, anulado ou declarado nulo em juízo, o que foi decidido com relação àquele específico ato não tem o condão de vincular o que será decidido com relação a atos futuros, mesmo que similares. Não há coisa julgada para atos persos, mesmo que eles possam ser assimiláveis, verdadeiramente idênticos, ao já julgado e repelido pelo Estado-juiz. É para tais situações (e só para elas) que a Súmula 239 deve incidir.” E prossegue: “Para confirmar o acerto das afirmações feitas pelos parágrafos anteriores, cabe dar voz ao Relator do citado precedente que, de acordo com a jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal, é o seu leading case: “(...) Mas o que é anual é o lançamento, não o imposto em si mesmo. É o lançamento (em se tratando de impostos diretos) que se renova anualmente: de modo que uma questão sobre irregularidades verificadas num dado lançamento é restrita ao exercício, não alcançando a sentença nela proferida aos exercícios posteriores em que o lançamento poderá não ter os mesmos vícios.” BUENO, Cassio Scarpinella. Coisa julgada em matéria tributária: reflexões sobre a Súmula 239 do STF. Revista Tributária das Américas. São Paulo, RT, v. 5, n. 9, p 75-102, jan./jun. 2014. [4] Ver: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/jorge-alves-correia/o-valor-do precedente-no-direito-administrativo-portugues [5] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 2ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984. p. 42-44.
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